segunda-feira, 30 de julho de 2007

fim de semana

Um certo par de dias simplesmente não pode ter 48 horas. Alguém adiantou o relógio enquanto nos abraçávamos exaustos, só pode ser. Passou tão rápido. Por outro lado, num par de dias podem caber tantas lembranças e sentimentos que eles parecem dias de 100 horas. Matematicamente impossível, emocionalmente improvável, mas é assim.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

bombordo

Os trajetos que desenho com dedos mágicos em sua pele mostram que estou no caminho certo. Quantos cafunés transformaram seus cabelos em marolas. Desmanchadas em ondas suaves, garantindo que mesmo velejando a incontáveis nós com a ajuda daquele sopro fresco e depois quente o barco não há de virar. Se virar, fique tranqüila. Nadadores não se afogam.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

retificação

Você tem razão. Eu não te amo. Sinto apenas uma vontade constante de estar perto. Quando vejo uma coisa bonita, como a calçada da esquina de casa coberta de flores roxas hoje à noite, quero te mostrar. Às vezes te olho de longe. Não para que você me veja, mas para matar a vontade. Guardo o que você me diz sem esforço e sem saber. Lembro no susto, e gosto disso. Misturo carinho e agressividade naturalmente. Não estudo, mas aprendo. Fico feliz quando você gosta de uma música, de um lugar, de uma frase desenhada sob medida, quando percebo que certas coisas são nossas, que estamos brincando juntos de lego - daquele jeito gostoso e inventado, sem manual. E isso tudo não precisa de nome, não precisa ser dito. Só quero que continue.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

sorte

Papel laminado correndo gigante nas bobinas. Alguém quase Björk de dançando no escuro manuseia as folhas. Corta em tamanho menor, embala e vende. Algum caminhão leva para alguma fábrica, que imprime tinta verde avisando que trata-se de menta e picota de novo. Esmeraldas de açúcar descem pela esteira. Dedos habilidosos fazem-nas sentirem-se abraçadas. Saco plástico, caminhão. Via Dutra ou qualquer outra, até o depósito. De lá negociadas sem glamour para algum supermercado. Administradora de festas compra com semanas de antecedência. No dia coloca em recipiente de vidro, bonito. Chega a grande noite, e a balinha de hortelã dorme despretensiosa. Dedos longos a alcançam. Minutos depois, embalagem detida por dentes que gostam de lábios, é acordada. Papel se estica lentamente. Frente à bala nua, ninguém presta atenção.

terça-feira, 10 de julho de 2007

amnésia alcoólica

Depois de um tempo acostumei. Aprende-se a lidar, na verdade. Se você não lembra o que fez, a chance de ter feito algo não muito correto é enorme. Recomendo mapear com os chegados para saber as dimensões do estrago. Desculpas só são necessárias se as mancadas envolverem amigos. Caso contrário, o melhor a fazer é fingir que nada aconteceu. Se alguém comentar em voz alta, em meio a não-participantes da esbórnia na hora do café, das duas uma. Ou é mau caráter ou queria estar no seu lugar.

Difícil mesmo é quando você quer lembrar, e não esquecer. Escolheu as palavras com carinho e a voz tremeu com sinceridade - como pesa a sinceridade. Essa, confesso, me pegou de surpresa. No ambiente barulhento e esfumaçado, devo ter falado com o queixo junto ao peito, alto o suficiente para você me ouvir e baixo o suficiente para que o pernambucano que nunca mais verei à minha direita, o brother em frente e o conhecido à esquerda não ouvissem. Faz tempo e não lembro muito bem o que se passava naquela época, mas posso ter dito que havia um pouco de você em cada minuto do meu dia, que eu tentava nadar rio acima inutilmente, quando tudo o que queria era aproveitar a descida. Importa menos onde se vai desaguar.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

45

Sentado no sofá de couro preto vagabundo, ele esperava. Vez ou outra fazia comentário sobre o jogo de futebol na televisão, um modorrento Náutico e Palmeiras, zero a zero. Poderia ter pensado "pelo menos o meu jogo já saiu do zero a zero", mas não o fez. Tinha os olhos fixos em um mural cujo vidro espelhava. Era ali que apareceria primeiro. Reflexo, depois ela.

Perguntara diretamente, mas o desejo de lhe fazer uma surpresa e o rosto lindo comunicando a intensão barraram demais perguntas. Lição aprendida. Deixe-se surpreender. Reuniu os elementos que tinha. É preto, colado ao corpo, tecido fininho e, principalmente, não é a primeira escolha do pai.

Ouviu o plecplec de sapato de mulher vindo pela escada. Desajeitou o cabelo mais um pouco, respirou fundo e fixou o olhar. Era ela. Sentiu o ouvido entopir como se descesse a serra. Ela passou rapidamente, mas deixou tempo suficiente para ter os tornozelos mirados, as pernas escrutinadas, as costas lambidas com os olhos e o corpo desejado. Gol do Palmeiras no último minuto. Golaço dela, bem no comecinho do jogo. Golaço.

sexta-feira, 6 de julho de 2007

inspiração

Encheu os pulmões como se tivesse fome de toda a atmosfera. Colocou para dentro poeira, pólen, amores, chuva, cheiro de neutrox do cabelo de uma moça que passava na rua, desespero, angústia, alívio, felicidade, aroma de fritura-padrão de frente do mc donald's, vontade de gritar e carvão em brasa. Escreveu como poucas vezes e recebeu o elogio de que estava inspirado. Respondeu que era bem melhor do que estar expirado. Com o corpo murcho, precisando de assopro no dedo em moldes de desenho animado para virar alguém. Era melhor também do que ser um ex-pirado. Caboclo que resolveu fazer tudo certo e nunca mais teve dúvidas. Deixou de olhar para o lado e perdeu um bonde que não sabia onde ia dar, mas no qual tinha vontade incontrolável de subir.

terça-feira, 3 de julho de 2007

pulha

Olhou no espelho e viu um cretino. Canalha da pior espécie, vilão de novela das seis. Menino bem criado, gentil, abre as portas, nunca passa na frente de uma mulher. Estudou na escola da elite, morou no exterior, entraria fácil na classificação de "cidadão de bem" ou como algum tipo vazio de exemplo. Razoavelmente bem empregado - "é, o mercado tá foda..." -, sorriso bonito. Mirando a si mesmo sabia que não passava de um moleque, medroso e metido a malandro. "Minha mãe ficaria decepcionda", pensou, num dos raros lampejos de percepção. Finalmente viu que não tinha o direito de ser desonesto, mesmo que arranjasse mil justificativas, várias verdadeiras, algumas plausíveis. Sentiu o peso de ser um pulha e mudou antes de esquecer.