sábado, 30 de junho de 2007

perspectiva

Foi inusitado, depois desses dias, te olhar a média distância. Situação em que poderia estar vendo apenas aqueles trechos de pele, os lábios, cabelos confusos. Diferente também de quando passo de longe, navio no horizonte com aceno tímido de náufrago. Sua beleza é outra a média distância. Fica no centro do quadro e torna insignificante tudo ao redor. Distância suficiente para lançar olhares, mas com certo perigo que alguém os intercepte. Eu gosto da média distância, mas prefiro a ausência dela.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

causa e conseqüência

Ontem não se pensava em outra coisa. Aquilo que às vezes não parece mas é real, algo mais ou menos cruzamento da Cardeal com a Teodoro, aconteceu, ontem. Há dúvida se ontem era o dia certo. Mas talvez não houvesse forma de conter para além de ontem. O dia ontem foi tão atipicamente quente que até choveu chuva de verão. Ontem criou um novo amanhã.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

taquicardia

Vasos dilatados. Sangue vazando para dentro, rápido, preenchendo galerias de fervura. Acelerando aquele músculo involuntário que pulsa por você. Lenha na caldeira da locomotiva. Queima queima queima. Descobre-se que o ponto de fusão do corpo é muito maior do que se pensava. Pupilas dilatadas, dedos crispados. Depois ágeis como felino. Oxigênio a conta-gotas.

A distância necessária para descobrir este perfume não permite retorno.

terça-feira, 26 de junho de 2007

reação

Dizem que ela teve tempo de pensar.

Algum veneno deve haver na ponta destes dedos para me deixarem febril quando seguram meu braço com certa força. Barba mal-feita e áspera fazendo faísca no meu pescoço. Calor. Vestígios de eletricidade naqueles braços, que fecham corrente em volta da minha cintura e causam curto-circuito. Tanques de coisa altamente inflamável são as coxas, para me fazerem combustar dessa forma ao se intrometerem no meio das minhas. Calor. 16 toneladas de pressão: corpo grudando minhas costas na parede. Lábios como meteóro incandescente, caindo certeiro em minha direção. E eu envenenada, chamuscada e eletrocutada não tenho para onde fugir.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

labirinto

Quis ir embora. Quase perguntou a ela onde estava o mapa, mas conteve-se. Condenou-se por não ter jogado as inúteis migalhas de pão de João e Maria pelo caminho para saber como voltar. Olhou em volta e viu enormes as árvores que tinha plantado fazia pouco. Terreno fértil, pensou. Como pode sair para um passeio com alguém, jogando sementes pelo chão sem saber direito se elas vão brotar, e de uma hora para outra você está em um labirinto. Árvores sem fim, formando paredes instransponíveis. Ficou parado observando a floresta por mais de dez minutos. Quer ficar ali para sempre.

domingo, 24 de junho de 2007

contato

Deixaram as pernas encostar como se não tivesse a menor importância. Era bom estar ali. Os olhos pequeninos dela queriam sumir o cansaço do corpo dele, que prestava atenção em cada movimento. Um pouco de contato em ambiente quase neutro. Aproveitaram bem aqueles minutos, como vinham fazendo desde o dia anterior. Não contavam, mas sabiam que aquele período de vazio estava chegando e por isso se aproveitavam. Foram embora juntos. Tinham cuidado com a semântica. Cada palavra, em cada estágio, queria dizer uma coisa. Mas aquilo que insiste intensamente em incidir ao mesmo tempo é mais do que coincidência, ele concluiu. Deram as mãos num movimento de até mais - pararam com as despedidas. Cada dedo encostado dizia quero estar com você. Era assim que se beijavam. Sem lábios. Crime perfeito. Algumas coisas são simplesmente lindas. Something, o céu de Bagdad Café, o que eles sentem um pelo outro.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

evolução

Da timidez ao olhar, do olhar ao sorriso, do sorriso ao diálogo, do diálogo à malandragem, da malandragem à falta de timing, da falta de timing à malandragem, da malandragem à madrugada, da madrugada à malandragem, da malandragem à situação sem precedentes, da situação sem precedentes à dúvida, da dúvida à decisão, da decisão à contraproducência, da contraproducência à angústia, da angústia ao diálogo, do diálogo à serenidade, da serenidade à verdade.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

biografia

Se algum dia minha vida vier a valer uma, nem que seja um projeto de conclusão de curso de alguma faculdade xinfrim, que participação você quer ter?

Um parágrafo, escrito pelo menos talentoso do grupo, mal-ajambrado nos primeiros capítulos, daqueles que o orientador pergunta "não podemos cortar isso aqui?"

Ou quer ser a grande entrevistada, receber os alunos ansiosos em casa e lhes oferecer uma xícara de chá antes de contar nossa história?
Separar um marcador, uma dedicatória, uma página de bloco arrancada. Mostrar ponderando que naquele tempo os repórteres ainda usavam papel e que, no verso, havia palavras do então governador do estado. "Ele escreveu isso em uma pauta...". Contará detalhes do nosso casamento, dos livros que terei escrito para você, dos furos que apuraremos juntos, do tanto que te gosto.

terça-feira, 19 de junho de 2007

dois sentimentos

Um deles é parente querido internado em hospital, mantido vivo por aparelhos. Cansado pelo tempo, colecionador de chagas pelo caminho, ferido de bala mês passado. Cada encontro é um alento. Dá vontade de dormir desconfortável na poltrona ao lado da cama, aguardando a volta à vida, de esperar até que apareça a cura, de insistir. Você viu aquele cara na Polônia, que acordou depois de não sei quantos anos?
Depois da volta para casa, depois de sentar à mesa da cozinha e chorar tomando um copo d'água, a palavra. Ortonásia. Recompõe-se. Na próxima visita eu falo. Falta coragem.

O outro nasceu prematuro mas não precisou de incubadora. É um bebê lindo, daqueles Anne Geddes, cheio de dobras. Se algum pediatra esperto o descobrisse, faria um estudo para levar a muitos congressos. Emocionar platéias e dizer a vida vive nos provando o contrário. Tem tudo para ser um adulto com tantas qualidades que as pessoas sorriem só de olhar. Falta que a mãe o abrace e embale.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

barra

Pisou a rua de terra desviando da brita que nunca entendi porque fica ali como há anos fazia. Tinha uma curiosidade para matar. Caminhou duas casas. Olhou o muro de pedra. Não se lembrava da descrição, o que não a impediu de dar meio sorriso e pensar é essa. Ela não percebeu, mas aquele quase mostrar do dentes era formado por algumas camisetas, um par de tênis, folhas semi-desperdiçadas, incontáveis olhares, zilhões de 0s e 1s se alternando em código binário, um perfume, dois abraços, 229 mensagens de texto, uma madrugada, dezenas de cafés, aquelas músicas, doze horas e cinqüenta e um minutos, raros apertos de mãos,

Perguntaram algo que ela não ouviu direito. Disse que/não/nada e puxou outro assunto.

sábado, 16 de junho de 2007

esquema



P.S.: trocar galega por morena.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

amputação

Sentimento estranho, este. De ter saudades do que está perto, uns 30 passos de distância, contei hoje. Nos últimos dias fui algumas vezes até sua janela e fiquei espiando quieto, pensando. Saí sem dizer nada, sem jogar uma pedrinha para chamar. Toto dos novos tempos, talvez. Sinto falta das possibilidades, das cenas que criei. Na última estou de pé na cozinha olhando a vista, você chega pelas costas, me abraça e canta o mais recente refrão a entrar na minha vida com significado novo. Que saudades da sua preocupação, do seu olhar de cuidado. Desculpa te dizer aquela vez que você sofria por opção. Continuamos conversando por esses sinais de fumaça, rastros digitais de nossas andanças. Amputação lenta, sem anestesia, de um membro saudável. Os tecidos vão rasgando aos poucos. Às vezes há uma cicatrização e é preciso rasgar de novo. Dói, dói, dói, pequena. Não sei se tem outro jeito.

terça-feira, 12 de junho de 2007

quero-quero

Quero te obedecer. Bolar maneiras mirabolantes de tirar meu braço formigante debaixo do seu corpo sem te acordar. Perder a hora. Ganhar o dia. Descobrir se o melhor churrasco grego do mundo é o de Paris ou o de Bruxelas. Que você me jogue na parede. No chão. Na grama. No colchão. Levar seu celular no bolso quando você resolver sair sem bolsa. Coçar suas costas. Dividir silêncios confortavelmente. Dar a colher e a panela do brigadeiro para você raspar. Te morder. Acordar, te fazer um cafuné e sussurar que vou tomar banho primeiro para você dormir mais um pouquinho. Receber um sorriso sonado dizendo obrigada, lindo. Plantar olhares. Colher sorrisos. Ir ao japa na cabine, rolar de rir no tatame e ficar com vergonha quando o garçom entrar de repente. Saber o endereço exato - com CEP - das suas pintas. Tirar longos e negros fios de cabelo das minhas camisas. Colocar o fone no seu ouvido e dizer ouve essa. Uma sobremesa e duas colheres. Levantar os olhos do meu livro na praia e te contemplar por alguns momentos enquanto você lê o seu. Te convencer que o melhor travesseiro do mundo sou eu. Comer coxinhas e bem-casados. Fazer recreios. Beijos que encaixam. Te desobedecer. Você.

(post constantemente aberto. criado originalmente em 28/05/07 à 00:51)

it's not over



(...)
My tears will show
That I can't let you go
It's not over, not over, not over, not over yet
You still want me, don't you
It's not over, not over, not over, not over yet
Cos I can see through you
It's not over, not over, not over, not over yet
(...)

segunda-feira, 11 de junho de 2007

pro buraco

Into the hollow

Avoir, Adieu, Goodnight
I'm too wrong, to get right
But I can't wait forever
I've always been alone
A fool believes he’s clever
Don't you wanna go into the Hollow ?
I won't go alone
Aren’t you gonna follow ?

I live behind my eyes
Be sure to keep the surprise
I break what I’ve already borrowed
That's why I always go
alone into tomorrow
Don't you wanna go into the Hollow ?
I won't go alone, aren't you gonna follow ?
Into the Hollow

domingo, 10 de junho de 2007

matemática aplicada

Preciso urgentemente de um gerente de investimentos. Depois de quase quatro anos numa aplicação segura e estável, de retorno razoável, resolvi transferir quase todos os meus recursos para um fundo novo que apareceu. Não posso reclamar do retorno, que em uma semana foi fantástico. Fiquei eufórico. O problema, dizem, foi a alínea L, que, indo e voltando do contrato, me impediu de efetuar o saque. Carência. De quanto tempo? Indeterminado. Confesso que não acreditei muito naquilo. As conversas com os controladores do fundo eram sempre produtivas, e o saldo crescia. Alguma brecha deve ter... Errei. Os controladores não querem mais tratar do assunto. Fiquei rico e não posso encostar em um centavo. Vou deixar lá. Espero que a CPMF não coma tudo e que, quando a carência acabar, se algum dia acabar, ainda reste alguma coisa.
Eu digo que deviam ensinar economia na escola...

terça-feira, 5 de junho de 2007

roteiro - parte 2

Depois de pensar por meio minuto ou por um inteiro, Igor se levantou. Olhou baixo.
- Ela também gosta do cara...
Pedro sacou.
- Olha, a personagem é sua. Se você me convercer, com coerência, que ela curte o cara, eu filmo.
- (Fiiiiiiiiiilho da puta...)
- Mano, ela tá enrolando com esse papo. E o cara é um puta trouxa. Devia ter aprendido isso com a primeira mina, aos 16.
- Isso o que?
- Putaquepariu, é você, né?
- Eu que?
- O trouxa...
- Se fodê, mano... Trouxa o que...? Escrevi uma história, só.

Pedro sabia que o roteiro não valia nada, e que, por isso, Ana devia uma. (Vou cobrar em ...). Mas se interessou pela história. "A história do trouxa"... é..., bom título...

(continua)

domingo, 3 de junho de 2007

roteiro - parte 1

- Não, não! Peraí, isso não faz o menor sentido!
- Por que não?!
- Porra, porque eles não podem chegar nesse nível antes de contato físico, isso não existe!
- Claro que existe, essa é a beleza do roteiro!
- Quando você me falou, achei que fosse um flerte. Aí tudo bem, eles se olham, pá, aquilo tudo. Agora, desse jeito, ninguém vai acreditar nessa merda!

Acenderam cigarros. A grande dúvida de Igor era: digo para esse puto que a história aconteceu comigo ou venço na argumentação? A de Pedro: onde estava com a cabeça quando aceitei essa porra? Papéis, garrafas e xícaras sobre a mesa, duas da manhã. Sob o escritório da produtora a Vila Madalena pulsava infernal. Pedro foi à janela e enconstou a testa na moldura do vidro. Tragou. "Essa porra encheu de playboy, que merda...". Igor voltou com copos d'água. Sugeriu.

- Vamos começar de novo.
- (Suspiro) Cara, da onde você tirou isso?
- Bicho, olha que lindo. A maioria das pessoas se pega e depois se conhece. Às vezes dá certo, muitas não. Essa história é sobre duas pessoas que, sem nunca terem encostado os lábios, sem mal terem encostado um no outro, se gostam pra caralho. Talvez por anos.
- Mas presta atenção. Tudo bem que cinema é cinema, mas como você acha possível se apaixonar por alguém sem nunca ter dormido, ou melhor, sem nunca ter acordado com a pessoa? Isso aí é o seguinte. O cara quer, a mina não e ele caiu na dela para manter as esperanças. Amor platônico. Puta clichê. Sem contar que vai ficar chato pra cacete na tela. Não acontece nada!

Igor colocou o dedo indicador e o dedão juntos sobre o nariz, separou-os penteando as sobrancelhas e voltou a uni-los por baixo, um em cada olho, os quais coçou.

(continua)